sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

LIBERDADE

LIBERDADE

Jerônimo de Almeida Neto

Pontas de galhos quebrados e espinhos rasgavam-lhe a carne. O sangue que escorria pelo corpo não coagulava, pois misturava-se ao suor que encharcava. sua roupa. Nonô não sentia mais a dor, apenas corria o mais rápido que podia.  Não sabia mais de onde vinha, nem onde chegaria. Seguira trilhas, onde existiam, onde não existiam abrira-as com as mãos calejadas pelo trabalho na roça. Se quisesse voltar, não saberia, nem poderia, o sinhô o esfolaria no tronco.
 Uma vez ouvira dizer que próximo à fazenda passava uma estrada. Não a encontrara na escuridão da noite, uns diziam que era pelo lado onde nasce o sol, outros que era pelo lado do rio, nenhum deles lembrava por onde viera, sequer sabiam se vieram pela  estrada. Chegaram de madrugada, exauridos pelo cansaço e pela fome. Depois de examinados pelo sinhô, foram direto para a senzala, onde descansaram até o sol raiar, para em seguida pegarem as ferramentas e começarem a labuta.
Corria desde a hora em que fora acordado pelo latido dos cães, nem o tiro que atingira-lhe o ombro o fizera parar. Pela altura do sol a muito se passara a hora do almoço. Sua boca secara. Será que encontraria o rio? – Se o encontrasse, saciaria a sede que o enfraquecia. De repente, Nonô percebe que não houve mais latido nem barulho de facão cortando galhos. Teriam deixado de perseguí-lo? – Será que poderia descansar um pouco?
Escondeu-se entre os arbustos e ficou paralisado por alguns minutos, ouvia apenas sua própria respiração, parecia não haver nada além dele naquele lugar. Por um momento sentiu-se livre. Abriu os braços e respirou profundamente, sentiu dor, uma dor horrível, só então percebeu que o ferimento no ombro continuava a sangrar. Sentiu-se fraco e deitou-se, precisava descansar, ao menos um pouco. Deitou-se no chão, sobre folhas secas e gravetos. Admirou o céu por entre as árvores até que adormeceu.
Sem saber quanto tempo dormira, levantou-se e pôs-se a caminhar, desta vez lentamente. As pernas pareciam pesadas, trêmulas. Os braços custavam a afastar os galhos que impediam-lhe a passagem. Ao ouvir o roncar do estômago, lembrou-se que não se alimentara desde a noite passada. Estava faminto, mas não podia desistir. Era livre agora, só não sabia para onde iria, não conhecia nada além da terra em que trabalhava.
Em meio às árvores, encontrou uma trilha estreita forrada de folhas secas. Parecia que ninguém passava por ali. Decidiu seguí-la, poderia ser menos árduo o caminho.
Caminhando pela trilha, observou que estava descendo lentamente. Talvez encontrasse o rio lá embaixo. E encontrou. Parou atrás de uma árvore e espreitou. A água estava suja, provavelmente passaram por ali com os cavalos. Faziam isto no riacho da fazenda. Como não havia ninguém por perto, agachou-se na margem e bebeu a água, que mesmo suja o saciou. A sensação no estômago era de enjôo, mas a garganta melhorou muito.
Depois de molhar o rosto na água barrenta, preocupou-se novamente com o ferimento no ombro, continuava sangrando, já estava fraco, afastou-se do rio, não queria ser descoberto, não agora que era um homem livre. Voltou a caminhar seguindo o caminho do rio, um pouco à distância, entre árvores e arbustos, para que não o descobrissem.
Um pouco abaixo, do outro lado do rio, avistou uma mulher que carregava uma trouxa de roupas na cabeça. Decidiu segui-la discretamente. Atravessou o rio com dificuldade e tomou a mesma direção que a lavadeira. Ela caminhava rápido demais para seu estado, era uma mulher forte, usava um pano encardido na cabeça e roupas velhas, cuja saia estava molhada até os joelhos. Estava difícil para Nonô acompanhar seu ritmo. Ela afastava-se muito depressa. Mesmo não vendo mais a mulher, continuou seguindo na mesa direção, sua testa derramava o suor nos olhos, obrigando-o a limpá-los, para poder prosseguir.
Caia a tarde quando o vulto branco surgiu entre as árvores. Parecia uma casa. Ele implorou que fosse uma casa. Sua prece foi atendida, era uma casa grande, muito grande, como ele nunca vira, mas estava longe. Seu ombro doía, a visão às vezes nublava, a casa parecia afastar-se, para e seguida voltar a estar perto, precisava alcança-la, seu ombro doía...
No gramado em frente à casa grande Maria corria em direção a sua grande amiga. A escrava Judite era mais que uma serviçal, um pouco mais velha, foi sua companhia desde a infância. Era sua maior amiga, sua confidente. Más línguas  diziam que as duas eram muito parecidas. Além do mais, todos sabiam que o coronel era dado aos chamegos com várias escravas. Alheias aos comentários maldosos, as duas viviam juntas, Judite gozava de certos privilégios entre os escravos, tinha até um cantinho perto da casa grande para dormir. Sem dúvida alguma, o coronel tinha apreço pela moça.
Sempre que ela voltava do rio, Maria ajudava Judite com a roupa. Estavam colocando-a no varal quando ouviram o gemido de Nonô, que subitamente aparecera, sem que elas dessem conta de onde saíra. Ele arfava, a respiração difícil sugeria que estivesse exausto. Tentava falar, mas a voz não obedecia sua vontade. Seu ombro doía...
As moças estupefatas não sabiam exatamente o que fazer, viram o sangue em sua roupa e correram em seu socorro. Judite, mais experiente, percebeu logo que tratava-se de um escravo em fuga, mais um pobre coitado que deve ter fugido das terras do Coronel Liberato, pensou enquanto ajudava o rapaz deitar-se na grama. E agora? – Perguntou Maria, entre apavorada e preocupada.

Nonô olhava as duas moças com olhar suplicante, fixou-se em Maria. Achou-a linda, nunca vira imagem tão bela. Era um homem livre agora, pensou, abriu a boca, queria falar. Sequer ouvia as palavras das duas, era um homem livre. Maria segurava sua mão, Judite tentava ver o ferimento em seu ombro. O sangue não parava. Maria chorou. Nonô tentou limpar-lhe as lágrimas, mas o braço não obedeceu sua vontade, era um homem livre, pensou mais uma vez, tentou apertar a mão da moça mais bonita que vira na vida. Seus olhos fecharam-se, fazendo dele um homem eternamente livre. 
Conto publicado no livro "Contos ao Mar" -  Editora Andross - 2006

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Meu primeiro conto

IMPEACHMENT
Jerônimo de Almeida Neto

O último lance de escadas foi vencido por apenas três saltos. Uma vez na rua, pos-se a andar apressadamente em direção ao MASP.
-        Desculpe senhora. – disse Lupe ao esbarrar em uma mulher que, distraidamente cruzou sua frente enquanto atravessava a Brigadeiro.
-        Pra que tanta pressa? – Retrucou a dona.
Sem responder, misturou-se à multidão de jovens que, de cara pintada, fita no cabelo e bandeira na mão corria para o museu. Em sua mente apenas a pergunta: Angélica viria?
-        Ela virá, disse a si mesmo. Também, marcar um encontro desses por telefone...
-        Não posso pensar assim, ela virá.
Desviou os olhos para o prédio da FIESP. Corre muito dinheiro ai dentro, pensou.
Eram milhares de estudantes se acotovelando em frente ao museu. Os coordenadores gritavam palavras de ordem, que nem sempre eram ouvidas.
-        Impeachment quando?
Alguém surge no meio da multidão com um megafone e consegue por um pouco de ordem.
-        Impeachment quando?
-        Já...
Diante da multidão ele para, consulta o relógio e seu semblante muda. Ela deveria estar em frente à coluna da direita
-                 Isto, na coluna à direita do vão livre – Dissera ela ao telefone, mas os ponteiros já marcavam nove horas e ela ainda não chegara. Aconteceu alguma coisa, só pode ser isto, pensou, andando de um lado ao outro.
Consulta novamente o relógio e inicia um zigue-zague entre aquele sem fim de estudantes que já ocupava as duas pistas da Paulista.
-        Fora Collor quando?
-        Já, já, já...
- Usarei um vestido preto e uma fita no cabelo, dissera ela ao telefone, mas como reconhecê-la se encontraram-se uma vez, e tão pouco durara. Também, parecia que todas as garotas estavam de vestido preto e fita na cabeça...
- E agora? – O que faço? – Perguntou.
- O que houve meu jovem? – Perguntou um político, que mesmo não sendo convidado insistia em ser filmado entre os estudantes.
- Nada que possa interessar-lhe, respondeu afastando-se.
-                  E se ela estiver aqui e não lembrar da minha fisionomia? – Raciocinou.
Ainda mais pintado e com esta capa preta. Ela não me conhece tão bem assim, concluiu.
De repente gritou
-        Já sei!
Gritou tão alto que todos á sua volta perceberam.
-        Pirou. – observou alguém, mas ele, entusiasmado, começou a escrever na testa o próprio nome.
Feito isso, atravessou novamente a rua em direção à coluna da direita. Angélica abriu os braços e correu ao seu encontro. Trocaram um longo beijo e, depois, entre olhares trocados e sorrisos, acompanharam a multidão que começava a marcha para o Anhangabaú.
-        Impeachment!
-        Já!
-        Impeachment!
-        Já!
-        Impeachment!

-        Já!

QUEM SOU EU



BREVE HISTÓRIA


Jerônimo de Almeida Neto nasceu em Santo André-SP, em 1957. Filho de migrantes nordestinos, recém-chegados a Santo André, em busca de trabalho e de melhores condições de vida para os filhos. Iniciou os estudos aos sete anos de idade no Grupo Escolar do Jardim Silvana, posteriormente denominado Escola Estadual Valdomiro Silveira, entre 1965 e 1968. Cursou o antigo curso ginasial no Ginásio Estadual Homero Thon, entre 1969 e 1972. Como muitos garotos de sua época, ingressou no SENAI, onde formou-se torneiro mecânico, em dezembro de 1974, profissão que exerceu por vinte e cinco anos, trabalhando em diversas empresas do ABC paulista.  Já adulto, cursou Ciências Sociais na Fundação Santo André, formando-se na turma de 1996. Cursou  Pedagogia na UNIABC, concluindo no ano 2000. Depois, pós graduou-se em Administração no Centro Universitário Santo André – UniA, em 2003 e cursou MBA em Gestão Pública (MPA) na Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS, concluído em 2011. Atualmente é mestrando em Estado e Política Pública na Fundação Perseu Abramo.
A trajetória profissional começou em 1972, quando trabalhou como servente de pedreiro, por 2 meses, logo ingressando no SENAI, para cursar tornearia mecânica. Foi aprendiz de torneiro mecânico, torneiro mecânico, torneiro CNC e instrutor de tornearia na mesma escola onde aprendeu a profissão. Depois de formado, foi professor na rede pública estadual, instrutor de formação profissional, assistente e coordenador pedagógico e de  projetos.
No serviço público, foi coordenador da Incubadora Pública de Economia Solidária na cidade de Santo André - SP, Coordenador do Centro Público de Emprego, Trabalho e Renda da Prefeitura da cidade de Diadema – SP, Diretor Secretário da Fundação Florestan Fernandes, coordenador da Central de Serviços Autônomos da Prefeitura de Santo André e Gestor de Supervisor Demandante do PRONATEC Brasil Maior na Agência de Desenvolvimento Grande ABC.
O interesse pelas letras aflorou quando, em 1992, participou do curso Leitura e Escrita, no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ministrado pela professora Silvana Todorof Pereira. Naquela ocasião, publicou o conto Impeachment, no livro Quem Conta um Conto, obra que reuniu contos de todos os alunos do curso de Leitura e Escrita. Continuando sua obra, escreveu e publicou os livros “Glossário da Reestruturação Produtiva – A Linguagem do Trabalho”, “Poemas para Maria” e “O Barro da Rua Biguá”. Atualmente está trabalhando na conclusão do livro “Crônicas de Peão”.  Publicou ainda os contos “Liberdade” e “Cartão de Visita”.
Jerônimo escreveu também os artigos acadêmicos: “O Novo Desafio Estabelecido Pelas Políticas Públicas Para A Promoção do Emprego e da Renda: A Experiência de Santo André”, nos Anais do Seminário Internacional de Políticas Públicas da Universidade Metodista de São Paulo, em parceria com o Prof. Sandro Maskio e “A relação entre o Programa de qualificação profissional e o mercado de trabalho em Diadema no período compreendido entre janeiro de 2008 e junho de 2011”, na Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Fez a revisão dos livros “Liberdade de Laura”, “Um Trilhar Poético”, “ “Poemas da Comunidade” e “ No Trilhar de uma Vida”, do poeta e escritor Leonardo José Dutra Campos.

Atualmente dedica-se ao trabalho na Agência de Desenvolvimento Econômico Grande ABC e à presidência da Associação ACESSO e à participação na COOPACESSO, onde contribui para que outras pessoas possam desenvolver a arte da escrita e da criação poética.